Dr Adriano Garcia, Manuel Dória Vilar, Prof. Dr. Fernando Paredes, Dr Francisco Bruto da Costa

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Da exequibilidade do título de crédito no caso de prescrição da obrigação cartular ou

Da exequibilidade do título de crédito no caso de prescrição da obrigação cartular ou quando não reúna todos os requisitos essenciais exigidos pelas Leis Uniformes.
* Fernando Nunes Ribeiro - Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra -

I. INTRODUÇÃO

1. Delimitação do tema.

Não é nova a polémica sobre a (in)exequibilidade da letra, da livrança ou do cheque a que falte algum dos requisitos essenciais estabelecidos na Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças ( LULL) e na Lei Uniforme Sobre Cheques (LUC) nem sobre (in)exequibilidade desses mesmos títulos depois de extinta a obrigação cartular, por via da prescrição, sabido serem os prazos desta inferiores ao da prescrição civil. Já na vigência do Código do Processo Civil de 1939 e posteriormente no âmbito do Código do Processo Civil de 1961 até à Reforma de 1995/1996 estas questões foram objecto de aceso debate na doutrina e na jurisprudência, sem que se tivesse logrado chegar a um consenso. E a aludida Reforma de 95/96, com a alteração que introduziu no artº 46º do C.P.Civil de 1961[1] - ao retirar da respectiva alínea c) a referência a explicita às letras, livranças, cheques, extractos de factura, vales, facturas conferidas, como documentos particulares executivos, para nela passar a prescrever genericamente que à execução apenas podem servir de base: " Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artº 805º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto" [2] - não conseguiu pôr termo a essa querela. Pelo contrário, parece tê-la até reacendido com uma nova avalanche de díspares decisões judiciais e diferentes teses doutrinárias. O objectivo destas linhas, produto da reflexão de quem, por dever de ofício, já teve, por diversas vezes, de pronunciar-se oficialmente sobre o tema, inserem-se nesse contexto e não pretendem ser mais que um pequeno contributo para o debate de ideias.

II - O TÍTULO EXECUTIVO 1. Noção Nos termos do artº 45º nº 1 do C.P.Civil, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva. O título executivo é, segundo a doutrina dominante, um documento: um documento constitutivo ou certificativo de obrigações. Um documento escrito constitutivo ou certificativo de obrigações que, mercê da força probatória especial de que está munido, torna dispensável o processo declaratório (ou novo processo declaratório) para certificar a existência do direito do portador[3]. O título executivo reside no documento e não no acto documentado, por ser na força probatória do escrito, atentas as formalidades para ele exigidas, que radica a eficácia executiva do título (quer o acto documentado subsista, quer não)[4]. E, sendo um documento, ele cumpre uma função probatória. Daí que, mesmo tratando-se de um documento não autenticado, mas cuja assinatura esteja reconhecida ou não seja impugnada pela parte contra quem o documento é apresentado, ele faça prova plena, nos termos do artº 376º nº 1 do C. Civil, considerando-se, assim, provada a obrigação exequenda até prova em contrário do executado. [5] O título é constitutivo da relação obrigacional quando a obrigação tem no acto documentado a sua fonte e é certificativo quando, procedendo a constituição da dívida de um outro acto, o título apenas confirma a sua existência. Os títulos executivos constam, taxativamente, do artº 46º do C.P.Civil, que após a alteração introduzida pelo Dec. Lei nº 38/2003, de 08/3, passou a dispor na sua alínea c), poderem servir de base à execução: «Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto». Portanto, para que os documentos particulares não autenticados constituam título executivo é suficiente, actualmente, que deles conste uma obrigação de pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético, de entrega de coisa ou de prestação de facto. A lei somente impede hoje a exequibilidade dos documentos particulares dos quais conste a obrigação de pagamento de quantia ilíquida não liquidável por simples cálculo aritmético.[6] E basta-se com aquele requisito substancial, prescindindo do requisito formal do reconhecimento notarial da assinatura do devedor, que antes exigia, a menos que se trate de um documento assinado a rogo (vide artº 51º do C.P.Civil).

III - A LETRA DE CÂMBIO, A LIVRANÇA E O CHEQUE 1. Como título de crédito A letra é um título de crédito que enuncia uma ordem de pagamento de uma quantia determinada dada pelo sacador ao sacado em favor do tomador ou à sua ordem. A livrança (no Brasil chamada de promissória) é uma promessa feita, no título, pelo subscritor de pagar ao tomador ou à sua ordem quantia determinada. E o cheque, tal como a letra, é uma ordem de pagamento dada pelo sacador a um Banco (sacado) para que pague determinada quantia por conta da provisão bancária constituída pelo sacador. E pode apresentar-se como título de crédito à ordem ou ao portador.[7] Porém, para que a letra, a livrança e o cheque possam reclamar-se da categoria de título de crédito cada um deles tem de satisfazer determinados requisitos exigidos pela respectiva Lei Uniforme. Assim, a letra tem de satisfazer os requisitos essenciais prescritos no artº 1º, enquanto a livrança os do no artº 75º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, e o cheque, por sua vez, os requisitos enunciados no artº 1º da Lei Uniforme Sobre Cheques, sob pena de não poderem valer como letra, livrança ou cheque. 2. Como título executivo a) Ninguém questiona, pensamos, que uma letra, uma livrança ou um cheque que reúna todos os requisitos exigidos pela respectiva Lei Uniforme possa constituir título executivo, apesar da alteração introduzida pela Reforma de 95/96 ao artº 46º do C.P.Civil. Antes da Reforma de 1995/1996, as espécies de documentos particulares exequíveis e os respectivos requisitos de exequibilidade constavam da al. c) do artº 46º e do artº 51º C.P.Civil. Dizia, então, a aludida al. c) que à execução apenas podiam servir de base: "As letras, livranças, cheques, extractos de factura, vales, facturas conferidas e quaisquer outros escritos particulares, assinados pelo devedor, dos quais conste a obrigação de pagamento de quantias determinadas ou de entrega de coisas fungíveis". A lei autonomizava, pois, de entre os demais documentos particulares, os títulos de crédito, em função da disciplina substancial própria da relação cartular. Com aquela reforma processual, o Código deixou de elencar especificadamente e à parte os títulos de crédito (letras, livranças, cheques, etc.) como documentos particulares executivos. Mas essa alteração não visou restringir o número dos títulos executivos, muito pelo contrário teve antes em vista - como se pode ler do preâmbulo do Dec. Lei nº 329-A/95, de 12/12 - uma «ampliação significativa do elenco dos títulos executivos, conferindo-se força executiva aos documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinável em face do título...». Aliás, mesmo antes de tal alteração já havia quem defendesse que «A referência genérica que a alínea c) do artº 46º faz a todos os documentos particulares retira toda a utilidade à especificadamente feita às letras, livranças, cheques e extractos de facturas, que se não distinguem dos demais títulos, no que aqui interessa, senão na disciplina substancial própria da relação cartular».[8] b) Mas poderá uma letra, uma livrança ou um cheque a que falte algum ou alguns dos requisitos essenciais da Lei Uniforme respectiva servir de base à acção executiva? Tanto na vigência do C.P.Civil de 1939, como do C.P.Civil de 1961 antes daquela referida alteração, já o Conselheiro Lopes Cardoso sustentava que «quando um documento, embora denominado letra, livrança ou cheque, não reúna todas as condições externas para realizar formalmente um título dessa espécies, ainda muitas vezes se lhe terá de conceder força executiva. Não pode deixar-se de lha conceder desde que o título tenha, em todo o caso, as condições mínimas que a última parte da al. c) do artº 46º estabelece, para a exequibilidade dos escritos particulares inominados; desde que demonstre uma obrigação de pagamento e esteja assinado pelo devedor»[9]. E opinião idêntica era defendida pelo Prof. Alberto dos Reis [10]. Quer dizer, já então se entendia que força executiva de um documento particular e requisitos essenciais de um título de crédito exigidos pela LULL ou pela LUC não eram exactamente a mesma coisa, porque um documento podia não reunir todos os requisitos para valer como título de crédito, mas apesar disso, conter, de acordo com o C.P.Civil, os requisitos necessários para ser considerado título executivo. E, também, não oferecia dúvida, por ser entendimento dominante da doutrina e da jurisprudência, que um título (cheque, letra ou livrança) a que faltasse algum dos requisitos essenciais enumerados naquelas Leis Uniformes, não podendo valer como tal (como cheque, com livrança ou como letra), podia, no entanto, valer como documento probatório da obrigação fundamental, como quirógrafo de obrigação, isto é, como documento particular de dívida escrito e assinado só pelo devedor[11]. E efectivamente não pode oferecer dúvida que qualquer desses escritos tem - como diz o Prof. Lebre de Freitas - implícita a constituição ou o reconhecimento duma dívida[12]. Aliás, pela nossa lei, o escrito nem sequer necessita de ser constitutivo da obrigação, pois basta ser certificativo ou recognitivo da sua existência. Por tal razão, um qualquer desses escritos, quando devidamente assinado pelo emitente e com a indicação expressa do numerário a pagar à pessoa a favor da pessoa de quem foi emitido, não certifica menos o reconhecimento de uma obrigação pecuniária do quando lhe acrescem os demais requisitos essenciais exigidos pelas respectivas Leis Uniformes, sendo, consequentemente, título executivo enquadrável na alínea c) do artº 46º do C.P.Civil. c) E uma letra, uma livrança ou um cheque quando prescrita a obrigação cambiária ou cartular, poderá também qualquer deles valer como título executivo? Prescrito o direito de acção, nos termos dos artºs 70º e 77º da LULL ou 52º da LUC, manterão esses documentos a natureza de títulos executivos?[13] Também já durante a vigência do C.P.Civil de 1939 e do C.P.Civil de 1961 (antes da referida reforma) se entendia que a letra, o cheque ou a livrança mesmo depois de prescrita a obrigação cambiária ou cartular, porque continuava a reunir os requisitos de exequibilidade aludidos na citada alínea do artº 46º do C.P.Civil, não perdia, por tal facto, a categoria de título executivo[14]. Hoje defende-o abertamente o Conselheiro Amâncio Ferreira, no seu Curso de Processo de Execução, 4ª ed. revista e actualizada, pag 33. E, de facto, apresentando-se a obrigação cartular, atento o princípio da abstracção, independente da relação subjacente ou causal e não sendo a novação de presumir, segundo o artº 859º do C.Civil, a relação fundamental mantém a sua eficácia, apesar de prescrita a relação cartular, já que aquela se não extinguiu com a subscrição do título de crédito, podendo, por isso, o credor reportar-se à obrigação fundamental e, com base no escrito, accionar o devedor[15], pois que, como ali se disse, tal escrito tem condições para valer como título particular de obrigação a que deve atribuir-se força executiva, nos termos da já mencionada al. c) do artº 46º do C.P.Civil. Se o título tivesse perdido, em resultado da prescrição cartular, a força executiva, o requerimento executivo nele baseado não poderia deixar de ser logo indeferido no despacho liminar, por inexequibilidade daquele [artº 812º nº 2 al. a) do C.P.Civil]. Mas como a prescrição, ainda que transpareça do título, não pode ser conhecida oficiosamente pelo tribunal (artº 303º do C.Civil), é óbvio que não poderá fundamentar o indeferimento liminar do requerimento executivo, não sendo nunca, consequentemente, causa de inexequibilidade do título dado à execução.

IV - PRINCIPAIS ORIENTAÇÕES JURISPRUDENCIAIS E DOUTRINAIS SOBRE O TEMA E RESPECTIVA CRÍTICA. 1- Sua enumeração e caracterização. Podemos hoje dividir em quatro grandes grupos as posições da doutrina e da jurisprudência sobre o assunto: A- Os que defendem que a letra, livrança ou cheque a que falte algum dos requisitos essenciais das respectivas Leis Uniformes ou cuja obrigação cartular se encontre prescrita, não constitui título executivo; B- Os que entendem que, apesar disso, tais escritos constituem título executivo, se deles constar a causa da obrigação ou se no requerimento executivo for alegada essa relação causal ou subjacente; C)- Os que advogam que esses mesmos documentos constituem título executivo, ainda que deles não conste a causa da obrigação, devendo, porém, a relação subjacente ou fundamental ser alegada no requerimento executivo, sob pena de indeferimento liminarmente, por ineptidão; e D- Os que sustentam que tais escritos constituem só por si, nos termos da al. c) do actual artº 46º do C.P.Civil, título executivo. São elucidativos do 1º grupo, entre outros, os Acórdãos do STJ de 04-5-99, in Col. Jur/STJ, Ano VII, tomo II, 82 e de 29-02-2000, in Col. Jur/STJ, Ano VIII, tomo I, 124; o Ac. R.C. de 09-3-99, in Col. Jur.Ano XXIV, tomo II, 19 e Ac. R.L de 20-602, in Col. Jur.Ano XXVII, tomo III, 103. São exemplo do 2º grupo os Ac.s STJ de 18-01-2001 e de 16-12-2004, in Col. Jur/STJ Ano IX, tomo I, 71 e Ano XII, tomo III, 153; e Ac. R.C. de 16-4-2002, in Col. Jur. Ano XXVII, tomo III, 11 (com um voto de vencido, defendendo a tese do grupo D supra). No 3º grupo, incluem-se o Ac. STJ de 29-01-2002, in Col. Jur/STJ Ano X, tomo I, 64 e as teses do Prof. Miguel Teixeira de Sousa e do Conselheiro Amâncio Ferreira, in, respectivamente, a Acção Executiva Singular, pag 68 e Curso de Processo de Execução, 4ª ed. revista e actualizada pag. 35. Por último, o 4º grupo conta com os Ac. R.C. de 03-12-98 e de 26-9-2000, in, respectivamente, Col. Jur.Ano XXIII, tomo V, 33 e BMJ nº 499, 389 e Ac. R.L de 27-6-2002in Col. Jur. Ano XXVII, tomo III, 121, e a opinião de Abrantes Geraldes, in Títulos Executivos, Themis, Ano IV- nº 7- 2003, 60. 2- Análise crítica A- Sustenta fundamentalmente a 1ª corrente, como já dissemos, que o título nas condições referidas não demonstra só por si a constituição ou reconhecimento de uma obrigação, uma vez que contém uma mera ordem de pagamento sem menção da obrigação subjacente, pelo que poderia, assim, eventualmente, ter sido emitido por dádiva ou mero favor. Mas isso é esquecer, mesmo quando o título não mencione a causa da relação jurídica subjacente, não só que a sua existência se tem de presumir, até prova em contrário a efectuar pelo executado, por força do estatuído no artº 458º n.º 1 do C. Civil, como ainda que uma coisa é a inexequibilidade do título e outra a eventual inexequibilidade da pretensão. E aquela, a inexequibilidade do título, decorre unicamente do não preenchimento por parte deste dos requisitos legais para que possa desempenhar a função de título executivo e nada mais[16]. Ora, para que um documento particular preencha os requisitos legais para desempenhar as funções de título executivo, basta hoje, de acordo com a al. c) do artº 46º do C.P.Civil, como já acima dissemos, que dele conste uma obrigação de pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético, de entrega de coisa ou de prestação de facto. É claro que na base da emissão do cheque pode ter estado uma dádiva. Como claro é ainda que a letra pode ser de favor, a assinatura da livrança pode ter sido obtida mediante coação física ou ser falsa e a obrigação subjacente pode já estar prescrita, etc, etc. Mas isto são tudo questões que respeitam à exequibilidade da pretensão e que o executado poderá e deverá invocar na oposição à execução (vide artº 814º al. g) e 816º do C.P.Civil), não questões que tenham a ver com exequibilidade substancial ou formal do título, porque esta afere-se pelo próprio documento, e é ele que a deve exibir. B) Entendem, por outro lado, os defensores da 2ª orientação que, apesar disso, tais escritos constituem título executivo, se deles constar a causa da obrigação ou se no requerimento executivo for alegada essa relação causal ou subjacente. Como já cima se disse, nada na lei exige que um escrito, para ter eficácia executiva, deva conter a razão da ordem de pagamento ou que isso tenha de ser alegado no requerimento executivo para esse fim. E estabelecendo, por outro lado, o artº 458º n.º 1 do C. Civil uma presunção de existência da relação fundamental, não será ao exequente que cabe fazer prova da existência da relação causal, dado esta ser de presumir até prova em contrário, mas sim o executado que terá de fazer prova da sua eventual inexistência. C) - Vejamos agora a tese daqueles que advogam que esses mesmos documentos constituem título executivo, ainda que deles não conste a causa da obrigação, devendo, porém, nesse caso, a relação subjacente ou fundamental ser alegada no requerimento executivo, sob pena de indeferimento liminarmente, por ineptidão. E isto muito embora também reconheçam, simultaneamente, que não é o exequente que tem o ónus da respectiva prova, uma vez que a causa de pedir não preenche no processo declarativo e no processo executivo a mesma função, servindo neste último apenas como elemento individualizador e identificador da relação jurídica material, isto é, da obrigação. Para apreciar da justeza desta tese, importa distinguir duas fases temporais: os casos em que a execução tenha sido instaurada antes da entrada em vigor do Dec. Lei nº 38/2003, de 08 de Março, que procedeu à Reforma da Acção Executiva, daqueles outros em que a execução tenha sido intentada só depois da sua entrada em vigor. 1. Até à data da entrada em vigor do aludido diploma, nada na lei havia, a nosso ver, que impusesse a alegação no requerimento executivo da causa debendi. Aliás, não faz sentido - como acentua Abrantes Geraldes[17] - impor o ónus de alegação sobre quem não tem simultaneamente o ónus da prova. Se, segundo os defensores desta tese, o exequente não tem de provar a causa de pedir, então donde e porquê a obrigação de a alegar no requerimento inicial? Esta tese parece basear-se na doutrina do Prof. Castro Mendes que já, no domínio do C.P.Civil de 1961 anterior à mencionada reforma, defendia a necessidade de alegação da causa de pedir na execução «para evitar que, se o devedor houvesse redigido outros documentos confessórios exequíveis, se possa repetir a execução»[18] ou seja, por outras palavras, para permitir ao tribunal conhecer oficiosamente da litispendência. Mas custa-nos compreender como é que o tribunal estaria ou estará em condições de saber da existência de uma outra eventual execução pendente (nesse ou noutro tribunal) contra o mesmo executado, sem a colaboração deste. Só o executado está, a nosso ver, verdadeiramente habilitado a dar disso conhecimento ao tribunal e, consequentemente, só ele poderá e deverá alegar a factualidade pertinente à apreciação da excepção da litispendência na oposição à execução. E o outro argumento - por alguns proclamado[19]- da necessidade dessa alegação para aferir da validade formal do negócio causal, também não colhe, em nosso entendimento, pela simples razão de que nas obrigações pecuniárias, como é caso, mesmo quando representativas de negócio formalmente nulo, o título deve considerar-se sempre exequível para a restituição da respectiva importância. Só o não será, como salienta o Prof. Anselmo de Castro, «para o cumprimento específico do contrato», porquanto a lei não exige, para o escrito ser considerado título executivo, que ele seja «constitutivo da obrigação mas tão-só certificativo da existência dela».[20] 2. Após a entrada em vigor do Dec. Lei nº 38/2003, de 08 de Março, já a questão terá de ser vista de outra forma. Com efeito, o legislador veio consagrar no artº 810º nº 3 al. b) do C.P.Civil o que nos parece ser a corrente doutrinal e jurisprudencial defensora da tese de que na acção executiva a causa de pedir não se identifica com o próprio título executivo, sendo antes constituída pelos factos constitutivos da obrigação reflectidos no título, ao obrigar que, no requerimento executivo, se exponham, ainda que sucintamente, «os factos que fundamentam o pedido, quando estes não constem do título executivo». A partir dessa data, sim, passou a ser obrigatório a alegação no requerimento inicial, quando não constem do título executivo, dos factos que fundamentam o pedido. Se isso não acontecer, a secretaria pode recusar o seu recebimento (artº 811º nº 1 al. a) do C.P.Civil) ou, não tendo isto sucedido, poderá ser recusada a sua distribuição pelo juiz competente (artº 213º do C.P.Civil). E se escapar a esse duplo crivo justificar-se-á hoje, agora com mais sólido fundamento - como explicitamente aconselham Teixeira de Sousa e Amâncio Ferreira - que o requerimento executivo seja liminarmente indeferido, por ineptidão[21]. D) De tudo o que acabamos de expor é fácil concluir, por exclusão de partes, que enfileiramos no grupo daqueles que sustentam que a letra, a livrança ou o cheque prescritos ou a que falte algum requisito essencial para poderem ser considerados títulos de crédito, podem, mesmo assim, valer só por si, nos termos da al. c) do actual artº 46º do C.P.Civil, como título executivo. É o que temos vindo a defender, desde 2000, nomeadamente no Acórdão da Relação de Coimbra, de 26-9-2000, sumariado no BMJ nº 499, 389 e no voto de vencido do Acórdão da mesma Relação, de 16-4-2002, publicado na Col. Jur. Ano XXVII, tomo III, 11, acima mencionados, e em outros arestos da referida Relação não publicados. Mas, presentemente, após a Reforma da Acção Executiva acima assinalada, não poderá deixar de se atender à imposição constante do artº 810º nº 3 al. b) do C.P.Civil acima citado, conforme ali discorremos.

V - CONCLUSÃO Estamos, assim, em condições de concluir que: 1. Para que um documento particular preencha os requisitos legais para ser considerado título executivo, basta, de acordo com a al. c) do actual artº 46º do C.P.Civil, que dele conste uma obrigação de pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético. 2. Uma letra, uma livrança ou um cheque prescrito ou que não reúna todos os requisitos essenciais para poder desempenhar as funções de título de crédito, pode, todavia, quando devidamente assinado pelo emitente e com a indicação expressa do numerário a pagar à pessoa a favor de quem foi emitido, valer por si só, nos termos da daquela al. c) do artº 46º do C.P.Civil, como título executivo, ainda que não contenha a razão da ordem de pagamento, porquanto é de presumir, nos termos do artº 458º n.º 1 do C. Civil, que essa ordem de pagamento teve uma causa. 3. Até à Reforma da Acção Executiva levada a cabo pelo da Dec. Lei nº 38/2003, de 08 de Março, a eficácia executiva de um desses escritos e a promoção e prosseguimento da execução, não dependia da alegação da relação causal ou subjacente no requerimento inicial; 4. Só com a Reforma da Acção Executiva, levada a cabo pelo aludido Dec. Lei nº 38/2003, de 08 de Março, é que passou a ser obrigatório, de acordo, com o artº 810º nº 3 al. b) do C.P.Civil, a alegação no requerimento inicial da execução dos «factos que fundamentam o pedido», quando estes não constem do documento; 5. Porém, a omissão dessa alegação não é causa de inexequibilidade do título e constituirá, eventualmente, tão-só uma irregularidade processual suprível. ˍˍˍˍˍˍˍˍˍˍˍˍˍˍˍˍˍˍˍˍ

[1] No C.P.Civil de 1939 os títulos executivos eram também elencados sob o artº 46º. [2] Redacção que o Dec. Lei nº 38/2003, de 8 de Março, que procedeu à Reforma da Acção Executiva, alterou para:" Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto". [3] Assim o definem ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO e NORA, in Manual do Processo Civil, 2ª ed. revista e actualizada pag 78/79. [4] ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO e NORA, obra citada pag 78/79. [5] Miguel TEIXEIRA DE SOUSA, in A Acção Executiva Singular, pag 67 [6] José LEBRE DE FREITAS, in A Acção Executiva, 4ª ed. pag 58) [7] FERRER CORREIA, in Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio, vol. III, pag 19 e segs [8] ANSELMO DE CASTRO, in A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 2ª ed. pag 37 [9] Manual da Acção Executiva, ed. da Imprensa Nacional, pag 57. [10] Código de Processo Civil Anotado, 3ª ed. vol. I, pag 166. [11] Vide as numerosas referências doutrinais e jurisprudenciais sobre a matéria, referidas por Abel Pereira Delgado, em anotações ao artº 2º da sua LUC e da sua LULL. [12] A Acção Executiva, 4ª ed, pag 59. [13] E de uma prescrição (e não caducidade) se trata, atento o decidido no Assento, de 12 de Junho de 1962; e hoje, da mesma forma, se teria de concluir em face do estatuído no artº 298º nº 2 do C.Civil. [14] Por exemplo, o Prof. ALBERTO DOS REIS, in C. P. Civil Anotado vol. I, pag 166 e o Prof. ANSELMO DE CASTRO, in A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 2ª ed. pag 37. [15] Neste sentido, OLIVEIRA ASCENSÃO, in Direito Comercial, vol. III - títulos de crédito - pag 86 e segs e FERRER CORREIA, in Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio, vol. III, pag 52 e segs [16] Miguel TEIXEIRA DE SOUSA, in A Acção Executiva Singular, de, pag 70 [17] in Títulos Executivos, Themis, Ano IV- nº 7- 2003, 60 [18] A Causa de Pedir Na Acção Executiva, Rev. Fac. Dto. Lisboa, XVIII, 1964 [19] LEBRE DE FREITAS, pag 62 e AMÂNCIO FERREIRA, pag 119 [20] A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 2ª ed . pag 42. [21] Mas, mesmo na actual conjuntura, não é sem reserva que aceitamos ser a sanção para tal omissão o imediato indeferimento liminar do requerimento executivo. Não que ofereça dúvidas constituir a falta de indicação da causa de pedir ineptidão da petição inicial, atento o estatuído no artº 193 nº 2 al. a) do C.P.Civil, nem um tal vício conduzir ao indeferimento liminar (artº 234º-A do C.P.Civil). O que não temos por líquido é que a falta de indicação da causa de pedir leve, no processo executivo, ao mesmo resultado que no processo declarativo. Afigura-se-nos que, no processo executivo, a falta de indicação da causa de pedir assume a natureza de uma mera irregularidade suprível, já que, como todos aceitam (mesmo os que antes desta alteração legislativa defendiam já a necessidade de indicação da causa de pedir no requerimento executivo), ela não tem, no processo executivo, a mesma função que lhe cabe no processo declarativo, uma vez que no processo executivo servirá apenas para a individualização da relação in judicio deducta e não também para delimitar os factos a apurar e que hão-de servir à procedência do pedido. A acção executiva basta-se - como escreve o Prof. Castro Mendes, in A Causa de Pedir na Acção Executiva - com «a prova (rectius: a demonstração) da relação em si, tal como consta, como força legal, do título executivo». Por isso, quer-nos parecer que só quando incumprido pelo exequente o convite que lhe tenha sido endereçado, nos termos do nº 4 do artº 812º do C.P.Civil, será de indeferir o requerimento executivo, ao abrigo do nº 5 do mesmo preceito processual. Não se pode esquecer a prevalência que o actual Código do Processo Civil dá hoje às decisões de mérito sobre as de pura forma.

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Trabalho publicado no Boletim da ASJPV.ª Série/ n.º 6/Abril 2008

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