quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012
Abertura Ano Judicial 2012 - Discursos
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CERIMÓNIA DE ABERTURA DO ANO JUDICIAL
Discurso do Bastonário da Ordem dos Advogados
31 de Janeiro de 2012
Exmo. Senhor Presidente da República
Exma. Senhora Presidente da Assembleia da República
Exma. Senhora Ministra da Justiça em representação do Senhor Primeiro-Ministro
Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Exmo. Senhor Procurador-Geral da República
Exmo. Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa
Exmo. Senhor Presidente do Tribunal Constitucional
Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal Administrativo
Exmo. Senhor Presidente do Tribunal de Contas
Exmos. Senhores Vice-Presidentes da Assembleia da República
Exmos. Senhores Presidentes dos Grupos Parlamentares
Exmo. Senhor Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas
Exmo. Senhor Provedor de Justiça
Exmos. Convidados
Senhores Magistrados
Caros Colegas
Minhas Senhoras e meus Senhores
Este é o quinto ano consecutivo que, em representação dos advogados portugueses, participo nesta cerimónia.
Os balanços que sucessivamente aqui tenho feito não foram positivos e o deste ano também o não será.
A situação da justiça e do país tem vindo a degradar-se, sem que se vislumbrem soluções que restabeleçam a confiança do povo português no nosso sistema judicial e no sistema político vigente.
A mentira, a demagogia e a irresponsabilidade foram erigidas em métodos privilegiados de actuação política.
As controvérsias estéreis substituíram com êxito o debate sério sobre os grandes problemas do país.
Vale tudo para ganhar eleições e, uma vez ganhas, logo os compromissos eleitorais são ignorados.
Há menos de um ano apenas, o governo de então caiu porque ousara propor medidas de austeridade muito mais suaves para o povo e para a economia do que aquelas que agora são impostas por aqueles que então se opunham a tais medidas e garantiam solenemente que nunca fariam coisa semelhante.
Algumas das medidas de austeridade que estão a ser impostas ao país nem sequer foram exigidas pela TROIKA nem constam do acordo com Portugal.
Perdeu-se todo o respeito pelos eleitores.
Muitas dessas medidas respondem tão só a uma agenda de interesses cuidadosamente ocultada durante os debates político-eleitorais que precederam a mudança de governo.
A crise também está a ser usada como pretexto para satisfazer antigas reivindicações dos sectores mais retrógrados dos nossos empresários, sobretudo daqueles que não foram capazes de se adaptar às exigências da modernidade e persistem agarrados aos arquétipos do mais primário liberalismo económico.
Em Portugal sempre foi mais fácil ser patrão do que ser empresário.
Mais fácil e mais compensador.
Os direitos laborais e sociais dos cidadãos deste país não são a causa desta crise nem constituem um obstáculo sério à sua superação.
Todavia parece que a receita para a vencer passa pelo empobrecimento generalizado da população.
Todos temos a percepção de que os sacrifícios que estão a ser impostos aos portugueses são desproporcionados em relação à gravidade da situação e não são equitativamente distribuídos.
A uns exige-se mais do que a outros e, em muitos casos, aqueles a quem mais se exige não são, seguramente, os que mais podem contribuir.
O povo português está no limite das suas capacidades e começa a dar sinais preocupantes de não suportar mais sacrifícios.
Há, de facto, um limite para os sacrifícios e esse limite já foi ultrapassado sem que, aparentemente, os nossos governantes se preocupem com isso.
Um perigoso sentimento de revolta está a generalizar-se em vastos sectores da população, não tanto devido ao peso das medidas de austeridade que lhes são impostas mas sobretudo pelo sentimento de injustiça que provocam.
Nem todos contribuem para a superação da crise e, principalmente, nem todos contribuem segundo as suas capacidades.
Há sectores e entidades que se isentaram dos sacrifícios, sem qualquer justificação aceitável à luz dos mais elementares princípios de igualdade e de equidade.
Não se compreende por que é que os funcionários públicos hão de ser mais sacrificados do que os outros sectores da população e, sobretudo não se compreende por que é que dentro da função pública há de haver sectores que ficam isentos de algumas medidas de austeridade e outros não.
Sejamos claros e justos: se é em respeito pela independência do Banco de Portugal que os quadros e funcionários desta instituição não serão obrigados a prescindir dos subsídios de férias e de Natal, então por que é que não se aplica o mesmo critério a outros órgãos do estado onde a independência é também um requisito para bom desempenho das suas funções?
Haverá entidade onde a independência seja mais necessária do que nos Tribunais?
Então por que é que os magistrados não tiveram tratamento idêntico ao dos quadros e funcionários do Banco de Portugal?
A independência do Banco de Portugal é mais importante para o governo do que a independência dos tribunais?
Por outro lado, as mesmas castas de privilegiados continuam a auto-isentar-se de sacrifícios e, mais do que isso, continuam a banquetear-se indiferentes aos sacrifícios impostos ao povo português.
As gigantescas remunerações que gestores transformados em políticos e políticos transformados em gestores se atribuem uns aos outros em lugares e cargos para que se nomeiam uns aos outros constituem nas circunstâncias actuais uma inominável agressão moral a quem, muitas vezes, é obrigado a cortar na satisfação de necessidades essenciais.
Há gestores de empresas, algumas delas até há pouco controladas pelo estado, que ganham num ano aquilo que a maioria da população só conseguiria se trabalhasse mais de um século ininterruptamente.
E isso, pressupondo que auferia um ordenado de mil euros mensais, pois aqueles cujas remunerações estão mais próximas do salário mínimo teriam de trabalhar mais de duzentos anos, consecutivamente, para conseguir o mesmo rendimento.
As nomeações para cargos públicos de amigos e familiares, de familiares de amigos e de amigos de familiares multiplicam-se escandalosamente, criando no aparelho de estado um gigantesco polvo clientelar cujos tentáculos se estendem já a empresas privadas onde o governo detém influência política.
Por outro lado, continua-se a alienar património público, em alguns casos com enorme valor estratégico para o interesse nacional, com o argumento de que o estado não deve estar na economia.
Mas, estranhamente, essa alienação em alguns casos é feita a empresas propriedade de outros estados.
Ou seja, o estado português não pode deter participações em empresas portuguesas mas se for um estado estrangeiro já pode.
Exmo. Senhor Presidente da República
Exma. Senhora Presidente da Assembleia da República
Exma. Senhora Ministra da Justiça em representação do Senhor Primeiro-Ministro
Na área da justiça, está a seguir-se uma política errática marcada pelo populismo e por uma chocante incapacidade de responder adequadamente aos principais problemas do sistema judicial.
O governo parece mais preocupado em responder na comunicação social às notícias sobre os problemas da justiça do que em encontrar verdadeiras soluções para eles.
O processo de desjudicialização, iniciado há vários anos, está a ser acelerado pelo actual governo com vista a retirar a justiça dos tribunais para instâncias não soberanas e até para entidades privadas cujo escopo é o lucro.
Este governo está declaradamente empenhado em criar condições para que em torno da justiça floresça o mesmo género de negócios privados que outros governos criaram em torno da saúde, com destaque para essa justiça semi-clandestina que são os tribunais arbitrais em que as partes escolhem e pagam aos pseudo-juízes.
Essa justiça privada já é legalmente obrigatória para certos litígios, impedindo-se as partes de acederem aos tribunais do estado.
Além disso, o anunciado encerramento de cerca de meia centena de tribunais em todo o país insere-se nessa estratégia de desjudicialização.
A partir de agora, as pessoas, além das elevadas custas judiciais que lhes são exigidas, além de todas as dificuldades que lhes são levantadas para aceder à justiça, ainda terão de percorrer, em certos casos, centenas de quilómetros para se deslocarem a um tribunal, sendo que em algumas regiões precisarão de dois dias para isso, caso recorram exclusivamente a transportes públicos.
Com essas medidas, os tribunais deixarão de ser símbolos da soberania e da autoridade do estado, deixarão de ser o símbolo da justiça e da paz social, para serem apenas meras peças que burocratas e políticos sem sentido de estado movem nos tabuleiros das políticas conjunturais.
É preciso proclamar bem alto que as pessoas do interior do país devem ser tratadas de acordo com os imperativos da dignidade humana e não como números dos gráficos contabilísticos.
É preciso proclamar bem alto que a justiça não é um bem de mercado e não pode ser gerida segundo as leis da oferta e da procura.
A necessidade de justiça não é elástica e, portanto não pode comprimir-se ou expandir-se com sucede com qualquer mercadoria.
Os pequenos concelhos do interior do país têm tanto direito a ter um tribunal como as grandes cidades do litoral.
A justiça, sobretudo a justiça penal, tem de ser administrada nas comarcas onde ocorreram os factos típicos, pois de outra forma não se realizarão cabalmente as finalidades de prevenção geral e de pacificação social.
A justiça não pode abandonar o interior do país, pois isso representaria um perigoso retrocesso civilizacional e uma perigosa limitação política no acesso aos tribunais.
Por outro lado, anunciam-se, a um ritmo frenético, alterações legislativas a alterações legislativas feitas por outros governos.
Um delírio populista apossou-se do legislador.
De repente descobriu-se a fórmula mágica que vai acabar com a impunidade absoluta da corrupção, que vai eliminar os expedientes dilatórios e vai pôr fim aos atrasos processuais.
Finalmente os criminosos vão ser todos apanhados - pelo menos por câmaras de filmar - e os crimes até já nem vão prescrever.
A investigação criminal deixará de se preocupar com a recolha de provas materiais dos crimes (que dá trabalho e custa dinheiro) para se orientar apenas ou preferencialmente para a obtenção de confissões – esse meio de prova que tão bons resultados deu na Inquisição, nos processos de Moscovo e nos tribunais plenários do Estado Novo.
Os tribunais passarão a poder condenar um arguido não pelo que ele disser em julgamento perante o julgador mas pelo que ele tiver dito aos acusadores durante as investigações.
Os juízes deixarão de se preocupar apenas com os julgamentos e com a condenação ou absolvição dos acusados e passarão, eles próprios, a preocuparem-se com a investigação dos crimes e a acusação dos suspeitos.
Com este governo os juízes deixarão de ser apenas julgadores e serão também procuradores e polícias, pois passarão a poder aplicar, durante o inquérito, medidas de coacção e de garantia patrimonial mais graves do que as requeridas pelo próprio Ministério Público, incluindo a prisão preventiva.
O governo pretende que, mesmo quando, durante o inquérito, os investigadores não considerem a prisão preventiva de um suspeito necessária ou útil para as investigações, o juiz a possa decretar por mero arbítrio pessoal.
Assim, o juiz de instrução, em vez de constituir uma garantia para os direitos dos cidadãos, transformar-se-á numa ameaça a esses direitos; em vez de impedir os abusos persecutórios dos investigadores, passará a exacerbá-los ainda mais; em vez de ser o juiz das liberdades passará será um juiz-polícia.
Com as alterações que se anunciam no domínio do processo penal vai aumentar ainda mais o caos nos nossos tribunais, pois nenhum sistema judicial poderá funcionar na selva legislativa em que vivemos.
E o mesmo se passa com o processo civil para onde se pretende transferir os paradigmas processuais do direito público.
Num processo de partes pretende-se eliminar o princípio dispositivo em benefício de um triunfante princípio inquisitório mecanicisticamente transposto do processo penal.
Exmo. Senhor Presidente da República
Exma. Senhora Presidente da Assembleia da República
Exma. Senhora Ministra da Justiça em representação do Senhor Primeiro-Ministro
Há, em Portugal – todos o sabemos – uma justiça para ricos e outra para pobres.
Mas, ao contrário de certos discursos populistas, isso não deriva, do facto de os ricos serem privilegiados nos nossos tribunais, mas sim da circunstância de aos pobres não estar garantida uma efectiva protecção jurídica nomeadamente no que se refere ao direito de defesa em processo penal.
O mal da nossa justiça não está no facto de os ricos defenderem com relativo sucesso os seus direitos e interesses em tribunal, mas sim no facto de os pobres não o poderem fazer porque o estado não lhes garante condições para isso.
Porém, agora, pretende-se acabar com essa desigualdade, nivelando a justiça por baixo, ou seja, generalizando a justiça dos pobres.
Durante décadas, os cidadãos mais carenciados foram defendidos preferencialmente por advogados estagiários sem qualificações profissionais para proporcionar uma efectiva defesa aos arguidos, e mesmo por defensores ad hoc que nem sequer tinham formação jurídica, como acontecia frequentemente com o recurso a funcionários judiciais chamados para fazerem de Advogados em audiências de julgamento.
Uns e outros limitavam-se, em regra, a oferecer o merecimento dos autos e a pedir justiça, abandonando os arguidos ao arbítrio dos magistrados.
Nesse tempo ninguém falava em alterar o sistema de apoio judiciário; ninguém se preocupava com essa indignidade; nenhum magistrado se pronunciava publicamente contra essa ignomínia.
Porém, agora que, graças à acção da Ordem dos Advogados, esse modelo foi alterado no sentido de dignificar e tornar efectivo o direito de defesa, todos os dias aparece alguém a propor alterações.
O apoio judiciário até já foi tratado no congresso de um sindicato de magistrados.
Alguns juízes querem que a defesa dos cidadãos mais desfavorecidos seja efectuada por funcionários ou por juristas avençados, os quais, como é óbvio, logo poriam os seus interesses próprios acima dos direitos dos seus representados.
Num tal cenário, haveria, obviamente, menos recursos, menos contestações, menos testemunhas para inquirir, menos diligências de prova a realizar e, obviamente, mais confissões; haveria mais vantagens para o defensor/funcionário e para os magistrados e mais prejuízos para os cidadãos.
Há muita gente empenhada em aliciar os advogados oficiosos para as vantagens do estatuto de funcionário.
A campanha de descrédito que o próprio governo tem levado a cabo contra os advogados que trabalham no âmbito do sistema de acesso ao direito e os atrasos nos pagamentos dos respectivos honorários são sintomas claros de um chocante desrespeito pelos direitos das pessoas economicamente mais desfavorecidas.
Portugal é um dos países da União Europeia que menos gasta em apoio judiciário, mas o governo ainda quer gastar menos – obviamente, degradando ainda mais essa dimensão essencial do estado de direito.
Segundo o Conselho da Europa, o estado português gasta em apoio judiciário uma média de 331 euros por processo, o que constitui o montante mais baixo de praticamente todos os países da antiga Europa Ocidental, bem distante, por exemplo, da Suíça (que gasta 1.911 euros por processo), da Irlanda (1.423 €), Inglaterra e País de Gales (1.131 €), da Holanda (1.029 €), da Itália (737 €), do Luxemburgo (714 €), da Finlândia (663 €) e da Escócia (537 €), entre outros.
Abaixo do nosso país só estão a Arménia, a Bulgária, a Estónia, a Geórgia, a Hungria, a Lituânia, a Moldávia, o Montenegro, a Rússia, a Turquia e São Marino.
Exmo. Senhor Presidente da República
Exma. Senhora Presidente da Assembleia da República
Exma. Senhora Ministra da Justiça em representação do Senhor Primeiro-Ministro
Apesar do sombrio diagnóstico que acabo de traçar, nem tudo está mal na justiça portuguesa.
Quero aqui, elogiar publicamente a acção do Tribunal Constitucional pelo insubstituível trabalho que tem realizado na defesa da Constituição da República Portuguesa.
Há momentos em que ficar calado é mentir.
E eu mentiria, hoje e aqui, se em nome dos Advogados portugueses, não prestasse homenagem a todos os magistrados que exercem funções no Tribunal Constitucional e que, recatadamente, quase com humildade, recusando os protagonismos fáceis que outros tanto procuram, vão cumprindo a sua difícil função de fazer respeitar a Constituição e, assim, reforçar e prestigiar o estado de direito.
Se a Assembleia da República é a casa da Democracia o Tribunal Constitucional, por mérito próprio, é o coração do estado de direito pois é aí que palpitam algumas das suas dimensões fundamentais.
Sem o Tribunal Constitucional o estado de direito estaria mais fragilizado e a democracia seria muito menos saudável.
Sem ele a Constituição da República, muito provavelmente, não passaria de uma folha de papel.
Por fim, quero dirigir uma palavra de despedida ao Sr. Procurador-Geral da República, pois, creio que é a última vez que, nessa qualidade, participa nesta cerimónia.
V. Exa. É um magistrado judicial que ao longo de mais de 40 anos de carreira honrou a magistratura portuguesa e dignificou a justiça e os tribunais.
Em mais de cinco anos como Bastonário da Ordem dos Advogados, nunca encontrei nenhum colega que consigo tivesse trabalhado nas várias comarcas do país aonde prestou serviço que não me elogiasse as suas qualidades de magistrado, mas também de carácter e, sobretudo, o respeito com que sempre tratou os Advogados.
V. Exa. nunca precisou de fazer exibições de poder para ser respeitado pelos Advogados com quem trabalhou.
São assim os grandes magistrados.
Como PGR, V. Exa. sempre teve um relacionamento exemplar com a Ordem dos Advogados e comigo próprio, muito acima das divergências e diferenças de opinião sobre os problemas da justiça.
Por tudo isso, aqui lhe tributo publicamente, a homenagem e o respeito da Advocacia portuguesa.
Com a sua jubilação, Sr. Procurador-Geral da República, estou certo que a justiça portuguesa vai ficar mais pobre.
Muito obrigado.
António Marinho e Pinto
Bastonário da Ordem dos Advogados
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